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O Símbolo de Gilgamesh – O Homem Que Não Podia Morrer

O tema de hoje, obviamente, estudamo-lo de uma forma técnica na cadeira de Fenomenologia Teológica (Religiões Comparadas da Nova Acrópole). Estudamos as traduções dos rolinhos e tabuinhas sumérias, babilónicas, etc., que esses homens do terceiro e do quarto milénio antes de Cristo nos deixaram.

Nesse legado encontrámos referências ao Mito de Gilgamesh. Vamos analisar este mito sob o ponto de vista simbólico e não tão técnico, de maneira a que possa interessar a cada um de nós.

Pessoalmente, creio que não só na história dos símbolos, mas também na história dos acontecimentos humanos, o mais importante não é captar a parte técnica ou formal – porque o técnico e formal passa – mas captar o espírito, captar os motores que puderam mover os acontecimentos históricos, quer seja na parte material, económica, política, espiritual. Refiro-me àquela parte que sobrevive em nós como humanidade e que é sempre fresca e atual. Então, Gilgamesh, não vai ser para nós somente aquele gigante sumério filho de Enlil, mas vai ser um símbolo, algo que pode estar em cada um de nós.

Gilgamesh é o filho de Enlil e diz-se – segundo todas as parábolas e todas as formas simbólicas – que é esse grande gigante que apareceu na Terra sedento de realizar uma série de grandes obras, de poder derrotar os inimigos da humanidade, de poder trespassar as trevas.

Existem várias versões que conjugaremos numa só para tratar de conseguir uma certa ilação comum a todas.

Gilgamesh tem, no princípio, uma vida solitária; dedica-se a errar pelos bosques e planícies e a investigar todas as coisas. Interroga-se sobre si mesmo, sobre o Mundo e sobre a Natureza, até que tem uma série de sonhos premonitórios que lhe anunciam que vai ter um amigo, que vai ter um duplo, que vai ter alguém como ele. Sonha que na cidade de Uruk cai do céu um machado de duplo gume.

O machado é um dos símbolos que existe em todas as mitologias. Na sua forma curva representa o Universo; na sua utilidade é o símbolo daquilo que o homem pode fazer com a sua vontade. É o laber, é a ferramenta física para poder talhar, lavrar as trevas, lavrar a terra e pôr a semente.

Gilgamesh sonha que o laber cai no meio das ruas e que todos os homens se reúnem junto ao mesmo e o adoram. Mas logo, ao encontrar este machado, este laber, vai chamá-lo de Enkidu. Enkidu é o seu “duplo luminoso”, Enkidu é o seu amigo. Porque Enkidu de machado transforma-se num ser, num homem.

Outras versões relatam que este machado foi manejado em primeiro lugar por Enkidu. Este é apresentado como uma espécie de gigante primitivo e bom que vivia entre os animais, nos bosques. Mais tarde, quando conheceu Gilgamesh, aprendeu os princípios da civilização.

A partir de então, Gilgamesh e o seu “duplo luminoso” começam a percorrer o mundo e a fazer uma série de trabalhos à maneira de Heracles. Esta série de provas são como as provas quotidianas que cada um de nós tem. Porque muitas vezes nos perguntamos se não poderíamos fazer como Heracles, se não poderíamos fazer como algum dos grandes homens da História: realizar alguma coisa que produzisse uma mudança total e profunda na natureza circundante, na história e na vida.

Mas, às vezes, não percebemos que todos nós, como se fôssemos Heracles, estamos a dar voltas na vida vencendo inimigos constantemente, inimigos como a inércia, inimigos como o temor, inimigos que são, em geral, a adversidade; que todos nós, quando aparecemos no teatro do mundo, quando chegamos à vida, entramos assim como que através de uma pequena porta e nos deparamos com uma série de rostos de pessoas que nos rodeiam, a alguns deles conhecemos e a outros não, e sentimos diante do mundo a curiosidade do conhecimento e sentimos a curiosidade de saber quem somos.

Não acontece a todos o mesmo? De repente, encontramo-nos no meio de uma família, de uma povoação, de uma cidade, de um país, de um mundo e perguntamo-nos: o que é isto que nos rodeia? E começamos a adaptar-nos e a cumprir o nosso próprio papel ali onde nos encontramos.

Houve um momento em que entramos neste teatro da vida por uma porta… e saímos do mesmo por outra porta sem saber, muitas vezes, nem porque entrámos nem porque saímos. Na nossa alienação do momento esquecemos o que é que éramos antes e não podemos prever o que seremos depois. Ou seja, é como se eu vos falasse hoje de Gilgamesh e a minha imaginação estivesse tão fixa em Gilgamesh que não me recordasse do que fiz antes – porque estou a falar de Gilgamesh – e tampouco soubesse o que vou fazer dentro de uma hora ou duas.

Não é por acaso essa a nossa própria situação quando, ao virmos para a vida, nos esquecemos se tínhamos existido em alguma parte e também nos esquecemos de pensar se vamos continuar a existir noutra?

Daí que os trabalhos de Gilgamesh ao vencer, por exemplo, um terrível touro que estava a assolar todas as regiões, ao ter que cruzar sete montanhas simbólicas, ao ter que cortar os enormes cedros com o seu machado e com a ajuda do seu amigo Enkidu, tudo isso, sejam símbolos da nossa própria vida.

Porque também nós temos que passar muitas vezes montanhas, atravessar rios, cortar os grandes bosques das inércias, os grandes bosques da incompreensão humana que nos rodeia… E temos temores e ansiedades.

Gilgamesh passa por muitas provas. Passa, inclusive, a prova da tentação de Inanna ou Ishtar – formas da mesma Deusa. A Deusa de beleza e atracção deslumbrantes vai dizer a Gilgamesh que detenha a sua caminhada, que não prossiga todas essas obras, que venha ao seu palácio onde pode receber amor, descanso, bons manjares e excelentes bebidas. Gilgamesh responde-lhe com palavras que têm uma matiz de eternidade – porque todos nós, ainda que não as tenhamos dito, pensamos nelas em algum momento: “Oh, Inanna! Tu és a Beleza, tu és tudo aquilo que pode representar o descanso e a paz. Mas olha o que sou. Eu sou como uma porta que deixa passar o vento, sou como uma tigela que perde a água, sou como um teto que já não cobre, sou um errante, sou um viajante. O meu amor é como uma pedra aderida à parede que cai a qualquer momento… Permite-me seguir na minha busca, permite-me procurar algo que possa fundamentar-me e possa justificar-me perante os meus próprios olhos antes que diante dos olhos dos outros.”

Estas palavras são a nossa própria busca, a busca de todo o homem que trata sempre de se justificar – valorizar-se – diante dos seus próprios olhos e cuja justificação perante os outros é basicamente uma espécie de reflexo da sua própria justificação – autovalorização – interior.

Gilgamesh segue em todas as trajetórias e aventuras até que chega um bom momento no qual, como numa parábola muito parecida ao rapto de Perséfone, perde a Enkidu. Enkidu morre e é notável a ternura com a qual Gilgamesh se dirige ao seu companheiro íntimo: toca-lhe, apalpa-lhe, fala-lhe… Vê que ele não responde e pergunta-lhe: “O que é este sono tão profundo que te colheu?” Acredita que se trata de um sono profundo que o embarga. Gilgamesh fala-lhe assim: “O que se passa que já não me respondes? O teu coração não bate, as tuas mãos não se movem, tão adormecido estás?” Gilgamesh parte pelas montanhas e pelos prados pensando em Enkidu morto.

E também se interroga se as suas mãos que hoje se movem estarão um dia paralisadas e como que alheias, e os seus olhos já não verão, nem a sua boca pronunciará palavras. Diz que tem que saber a verdade, saber onde está Enkidu, se é que está em alguma parte… “O que acontecer comigo, o que vai acontecer a todos os homens?”

O herói interroga-se sobre a sua própria sorte e a de todos os homens. Decide ir mesmo ao fundo do Mistério e descer aos infernos, como tantos outros seres mitológicos, para resgatar o seu amigo Enkidu. Na descida aos infernos encontra também uma série de dificuldades. Tem que se dirigir até onde o Sol se põe; tem que cruzar enormes oceanos; tem que vencer vários inimigos; por exemplo, um par de escorpiões que lhe barram o caminho. O escorpião sempre foi símbolo da morte, da morte da personalidade, da morte da carne. Vai ter que vencer também um par de homens-águia, um homem e uma mulher, que lhe cerram o caminho.

Ele procura algo; sabe que houve alguém que possuiu a imortalidade, ouviu dizer isso. Quando cruzava os mares de Shamash umas vozes proféticas tinha-lo revelado. Tratava-se de Utnapishtim. Utnapishtim era algo assim como um Noé; era aquele que se tinha salvo do Dilúvio, aquele que tinha feito um barco mágico com o qual salvou todos os elementos vivos de um mundo passado para os transferir para este Mundo Novo. Como pagamento de tudo isso foi-lhe outorgada a imortalidade.

Gilgamesh apresentou-se diante de Utnapishtim e perguntou-lhe o que é que necessitava para resgatar Enkidu. Ele respondeu-lhe que precisava de uma planta mágica que crescia unicamente no fundo do mar. Utnapishtim fala com Gilgamesh e tenta convencê-lo de que os homens não podem descer para a morte a não ser no momento em que são chamados. Trata de convencê-lo de que essa “planta da imortalidade” existe só para muito poucos e que a imortalidade consciente que ele tem não é uma bênção, mas uma maldição para os homens; porque se os Deuses lhe deram a possibilidade de esquecer vidas passadas e de não intuir as futuras, é porque isso é bom para os homens.

Diz o texto que Gilgamesh escuta respeitosamente, mas logo lhe diz: “Quero encontrar a alga da imortalidade.” Assim, desce até ao fundo do mar, até ao fundo do Oceano Primordial, o Okeanós grego, ou seja, o grande vazio, o grande escuro, a grande concavidade. Arranca a alga da imortalidade e começa a subir de novo até ao mundo onde estariam os mortos para resgatar a Enkidu.

Diz-se que quando Gilgamesh descansava, uma serpente lhe tirou a alga. A serpente é um símbolo de Sabedoria. Na Índia encontramo-la como o Nâga, ou seja, a serpente, a cobra capucho, símbolo da Sabedoria, do Discernimento. Também nos sarcófagos egípcios e nas suas estátuas há uma serpente no meio da parte frontal, é o Ureus egípcio, também símbolo da Sabedoria, do Discernimento. É o Olho de Dangma, do qual também falam os modernos indianos, ou seja, o Terceiro Olho no meio da fronte que permite ver as coisas mais além das aparências.

A serpente ao tirar-lhe a planta da imortalidade, impediu Gilgamesh de poder resgatar Enkidu, que vai ficar no fundo dos infernos. Mas os Deuses dão-lhe um prémio por ter realizado tantas proezas. Segundo a versão babilónica dão-lhe um prémio que é tanto um prémio como uma maldição. Gilgamesh, a partir desse momento, jamais irá morrer, converte-se num Imortal; vai viver continuamente através dos homens.

No princípio o herói alegra-se e pensa que assim ele pode continuar a viver ainda que Enkidu já não esteja ao seu lado. Mas acontece que a árvore que ele amava, seca; que os homens e mulheres que ele amava, morrem; que a cidade de Uruk é destruída; que Lagash desaparece; que os rios secam; que tudo muda… mas ele não.

Daí fica o Mito de Gilgamesh como o do Imortal que vai atravessando o tempo, vai atravessando todos os tempos, todas as humanidades. Nas tabuletas reza: “Tu que me lês; no tempo em que estiveres, entre todos os teus congéneres, entre todos aqueles que estejam contigo está sempre Gilgamesh.” A quem se refere? Refere-se a que há algum homem que através de toda a humanidade não morreu jamais e que simplesmente muda de roupa sem que nos demos conta disso? Ou terá talvez um sentido mais interno? Não se referirá a que dentro de nós mesmos existe, de alguma maneira, um Gilgamesh?

Há uns dias estive em Lyon, onde havia um grande relógio de pêndulo. Via como corriam os ponteiros, olhava o pêndulo que ia da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, com o seu som típico que faz “tic-tac, tic-tac”; esse “tic-tac, tic-tac” que sentimos no nosso próprio coração como se fôssemos um relógio vivo. Mas, pensei em algo: que se não prestasse atenção ao movimento do pêndulo, não sabia o tempo que passava; se não olhasse os ponteiros, tão pouco sabia o tempo que passava.

Obviamente, se tivesse ficado para sempre em frente ao relógio, a fome, a sede, o frio ou a velhice, me fariam sentir que o tempo passava. Mas, não são estes requisitos o mesmo que os ponteiros ou o pêndulo? Da mesma maneira, o Mito de Gilgamesh não se refere a algo que estaria mais para além das formas, mais para além dos requisitos?

Em todas as literaturas e em todas as velhas instruções, nas antigas lendas e nas distintas religiões falam-nos de ensinamentos parecidos. Eu creio de alguma maneira na escada que nos pode pôr em contacto com o nosso Gilgamesh interior, com este filho de Enlil, com Enkidu, o “duplo luminoso”; para isso temos de ter sonhos, ter afirmações e pensamentos suficientemente grandes e poderosos.

Dizia Unamuno (1): “Eu sonho com que nesta Terra nasçam muitos loucos, porque vi como deixaram o mundo os cordatos; seria melhor que viessem os loucos agora.” Não os loucos no mau sentido, mas os “divinos loucos”. Loucos como aquele Quixote que montava um cavalo de pau, o “Clavileño”, pensando que era um cavalo real. Ou como quando combatia os moinhos de vento dizendo que eram gigantes. Loucos capazes de combater, loucos capazes de fazer surgir de dentro o que têm como afirmação. Estes são os irmãos numa guerra interior, como diria Nietzsche, ou seja, é o poder interior do homem, o real Gilgamesh que todos temos dentro.

Quando, por exemplo, falamos de Acrópole em relação a estes mitos, referimo-nos à Acrópole, ou seja, a “Cidade Alta”; referimo-nos a esse fenómeno psicológico de ter no nosso interior uma “Cidade Alta”, uma montanha, que, no entanto,, em geral, não nos atrevemos a escalar. Não nos atrevemos a descobrir a nós mesmos, a falar do que sentimos, a escrever o que pensamos ou a viver da maneira que teríamos de viver. E damos voltas e voltas em redor da nossa montanha, como dá voltas um cão antes de se deitar. E no fim…, a vida deita-nos sem termos escalado a nossa montanha interior.

O que nós queremos propor não é uma cidade alta nem de cimento nem de ladrilhos – dessas já estamos cansados e contaminaram o único belo que tínhamos como património: a Natureza. O que queremos é uma Cidade Alta no verdadeiro sentido da palavra, ou seja, uma Acrópole que nos permita não somente ter uma Cidade Alta, mas sermos altos nós mesmos nos nossos Ideais, altos nós mesmos na nossa força.

Imaginai uma lança, como esta lança que sustém a bandeira de Espanha.

Quando está ereta, quando está vertical, então, é uma lança; mas quando está na horizontal, quando está estendida no solo, não é mais do que um pau. Que diferença existe entre um pau e uma lança? A verticalidade e o sentido. Que diferença existe, meus amigos, entre o pequeno ramo e uma flecha? É que o ramo está imóvel e a flecha está a cruzar o ar.

Que diferença existe entre o montão de borbulhas formado por algum detergente numa máquina de lavar e a espuma maravilhosa nas margens do mar? É que a espuma do mar se formou a partir do choque de uma onda, que vinha de uma distância de quilómetros e quilómetros, contra o granito, contra a adversidade. É preciso que possamos retroceder dentro de nós, ter noção da nossa atemporalidade, fazer surgir em nós aquilo que de grande e importante possamos ter. Todos nós podemos fazer surgir o grande e importante.

Não é minha intenção expor uma teoria abstrata, eu não quero expor uma teoria difícil, deixemos isso para as cadeiras onde os professores de maneira moderada “ditam” aos seus alunos. Eu quero mais um contacto humano e dizer-vos, de pessoa a pessoa, que pode existir essa capacidade de verticalização, que pode existir essa capacidade de ver as coisas, não na parte superficial, mas no seu aspecto profundo.

Quero dizer-vos que, assim como uma lâmpada é somente uma lâmpada quando tem uma luz dentro – pois sem essa luz deixaria de ser uma lâmpada e seria simplesmente um conjunto de metal e vidro –, também um ser humano não é tal porque tem olhos, cabelo, braços e pernas, mas que o é porque tem algo mais, algo que o diferencia como ser humano: uma vida interior.

Essa vida interior jaz em cada um de nós e está também no meio de nós. Essa vida interior não se pode extrair de maneira simples, mas sim de maneiras profundas e fortes. O homem tem o tamanho daquilo que se atreve a fazer. Observai um menino a dar os primeiros passos; se quer alcançar alguma coisa que está muito baixa, não precisa fazer, mas, como se esforça sobre as pontas dos pés quando se trata de apanhar um doce de que gosta!

Se nós tivéssemos a mesma simples vontade do menino para dar os primeiros passos sobre os nossos pés, em nos pormos nas pontas dos pés para alcançar aquilo que queremos apanhar! Se pudéssemos elevar as mãos e agarrar as estrelas! Se pudéssemos nos elevar sobre nós mesmos e levantar aquela parte móvel que temos para alcançar o que de verdade queremos alcançar!

Basta efetuar esse gesto. Basta ter essa resolução para que comece em nós a nascer Gilgamesh, o vencedor do Dragão, dos Cedros. Esse Gilgamesh que poderia voltar a dizer: “Eu sou uma porta que deixa passar o vento, que não prende nada; eu sou uma vasilha que deixa escorrer a água, que não a retém nem a escraviza.” Este Gilgamesh que pode descer até ao fundo do mar em busca da imortalidade.

Este Gilgamesh que todavia está em cada um de nós. Este Gilgamesh que se assoma em cada Primavera sob a forma de folhas de árvores mais além dos troncos que estão secos…, que se assoma outra vez nos berços na forma de meninos, que se assoma nas noites na forma das novas estrelas; esse que se formará amanhã com o novo Sol que vai surgir.

Aqui está o sentido de uma juventude perene ou, como diriam os pré-socráticos, essa “Afrodite de Ouro” que nos permita ser eternamente jovens, eternamente agressivos ante a vida, no real e verdadeiro sentido da palavra. Que nos permita, como novos Leónidas, poder resistir às Termópilas do Destino; fazermo-nos seguir por homens, que os homens sejam nossos amigos e nossos companheiros, e seguir nós também aos homens mais nobres, aos mais valentes e virtuosos.

Esses impulsos, essas virtudes e essas forças que estão somente adormecidas em nós, não desapareceram.

Quero-vos dizer que este Mito de Gilgamesh, sendo tão velho, é, no entanto, muito novo e muito atual. Não creio de nenhuma maneira que o mundo de hoje seja mais materialista que o mundo de há mil ou dois mil anos, como muitos dizem. Quiçá o seja talvez menos, ainda que pareça paradoxal. Dentro do homem atual, como dentro do homem de todas as épocas, existe essa força de elevação.

O que temos de fazer é tratar de ver que parte de nós é capaz de se levantar, que parte em nós é capaz de apanhar essas estrelas e trazê-las à Terra. Eu sei que, às vezes, estamos numa noite; bem, é certo que este é um momento escuro onde há materialismo, sei que há exploração, sei que há ignorância, sei que há luta, que há violência, que há incompreensão para muitas coisas…

Mas também sei que na noite mais escura, se lograrmos acender uma pequena fogueira, ela servirá para nos iluminar e aquecer o nosso corpo, e para além disso, ver-se-á de muito longe. E se logramos fazer muitas fogueiras na Terra, vamos reproduzir o fenómeno celeste das estrelas acesas.

Desde os mais antigos barcos até às mais modernas aeronaves, ainda se continuam a seguir as estrelas fixas, para se guiarem. Eu creio que as humanidades também se guiam pelos “Homens-Tocha”, por aqueles que sabem arder. Há um milagre e um mistério nas velhas lâmpadas de azeite que usavam os gregos e os romanos. Transmitem-nos o simbolismo de que estavam feitas de barro, tal qual é barro o que nos compõe, mas tinham algo móvel dentro de si, oleoso, como é a nossa própria psique que nunca está realmente num lugar determinado, pois divaga e balança-se ao ritmo dos nossos pensamentos: “isto gosta, isto não gosta; isto interessa, isto não interessa; quero ir, não quero ir, etc.”

Mas quando esse azeite entra em contacto com o fogo, esse azeite começa-se a consumir e a casca que era de barro, que era somente um pouco de água e de terra amassada, transforma-se então num buque que transporta o fogo. Dentro de cada um de nós pode surgir essa chama, essa força. Essa força faz mudar todo o sentido da nossa vida.

Essa força faz-nos entender os velhos mitos e os novos problemas. Essa força permite-nos dirigir aos homens com maneiras simples, com palavras singelas… e sermos entendidos. Essa força permite-nos construir, recriar, unir-nos, amar… É a Força Interior, a única força que vale, a única força real e espiritual. Porque não é uma força de contemplação, mas uma força erecta como uma lança, uma força que é capaz de lutar pelo que acredita, de vibrar por tudo aquilo que sente, como uma harpa eólica que se pode pendurar entre os ramos de uma árvore e só o vento a faz soar.

Não digamos que não temos oportunidade! A oportunidade histórica dá-se hoje como se deu na Suméria, em Roma ou como se dará dentro de mil ou dois mil anos. A verdadeira oportunidade está dada no nosso próprio mundo circundante e na nossa própria capacidade de poder vivê-la. Daí que vos diga que este Mito de Gilgamesh, tão complexo para estudá-lo desde o ponto de vista teológico, é assim simples para o ver numa pequena tertúlia filosófica; este Mito de Gilgamesh é atual no aqui e no agora. Este Mito de Gilgamesh somos nós mesmos.

Temos de nos atrever a sonhar três vezes – como Gilgamesh – com um machado luminoso para que desça junto a nós o companheiro de aventuras. Temos que recriar de novo nos homens o sentido cavaleiresco das proezas e nas mulheres o sentido que inspira as proezas, como o fazem as autênticas damas. Temos que recriar dentro de nós a força capaz de poder vencer o destino e os astros. Hoje falamos de astrologia, hoje falamos do destino, hoje falamos de pressão do meio, etc.; mas, se fôssemos realmente fortes, se tivéssemos um motor próprio, todas essas circunstâncias seriam aproveitadas e vencidas.

Que cada uma das dificuldades e adversidades sejam simples degraus sob os nossos pés; e assim levaremos cada um de nós – dentro do nosso interior – ao velho Gilgamesh; teremos também a recordação dessa serpente que nos rouba uma imortalidade sonhada, mas que nos dá uma imortalidade real; teremos a recordação das nossas proezas e poderemos deixar este mundo sem nos irmos jamais; porque permaneceremos, de alguma forma e de alguma maneira, mais além destes grandes enganadores que são o Tempo e o Espaço.

Estas não são simples palavras. Perguntemo-nos sempre: O que é uma coisa grande? O que é uma coisa pequena? O que é uma coisa velha? Se não podemos definir estas coisas tão simples, como poderíamos definir a vida? Todos estes conceitos são meras relações. O que importa é o que está para além da relação, para além das dualidades, para além da adversidade.

O que importa é lançar-se para a frente, ter fé num Ideal, ter fé em si mesmo, sermos novos Gilgamesh, cada um de nós. Todos talvez…?

Jorge Angel Livraga, Fundador da Nova Acrópole

Conferência proferida no dia 12 de Julho de 1975 na sede da Nova Acrópole, Conde de Romanones 5, Madrid, Espanha.