Em tempos em que nem sempre as opções oferecidas pelos cinemas parecem ou são realmente interessantes, uma dica para quem deseja selecionar bem o que assistir em casa. Produzido em 1986 nos Estados Unidos, “Questão do Coração” é um documentário sobre vida e obra de Carl Gustav Jung, que foi lançado Brasil apenas no dia 6 de dezembro de 2013, pela Versátil. Consta de uma entrevista com o próprio Jung, datada da década de 50, e com depoimentos de vários de seus amigos e alunos.
Dentro da densa quantidade de informações oferecidas, nem sempre fáceis de compreender, destaca-se a ideia do inconsciente,
Descrito pelo próprio Jung como uma das razões para seu famoso rompimento com Freud, pois este último encarava o inconsciente apenas como um espécie de “depósito” onde os resíduos da atividade consciente são descartados; para Jung, pelo contrário, trata-se de uma rica fonte de experiências, com vida autônoma, por vezes.
Ora vejam bem, para quem não trabalha diretamente com psicologia, analítica ou não, mas com filosofia, lembramos do conceito de inconsciente como tudo aquilo que influencia nossa atividade consciente, sem que possamos ver com clareza suas origens; daí que poderíamos identificar diferentes patamares de inconsciente: pessoal, individual, cósmico…pois até a conjunção de estrelas distantes influência de forma quase sempre ignorada a nossa ação. Assim, o inconsciente total seria algo muito parecido com o conceito de Mistérios nas tradições antigas do ocidente e oriente. Esse algo divino e misterioso deixa pegadas no campo do consciente, quer despertos ou em sonhos; essas suas representações ou símbolos indicam o próximo elemento que tensiona o consciente para nele aflorar e ser integrado, ou seja, o que necessitamos saber para continuarmos a crescer como seres humanos.
Parece complicado, mas não é tanto: a título de mero exemplo, podemos imaginar que, se alguém do nosso mundo de relações é constantemente boicotado pela inércia, fazendo-o perder constantes oportunidades de crescimento, seria muito natural e até previsível que sonhos de estar amarrado a algo muito pesado que arrasta consigo ao caminhar ou outros sonhos similares venham a surgir. Reitero que se trata apenas de um exemplo, pois a variedade com que os símbolos se apresentam é muito grande, e tentar catalogá-los torna-se sempre simplista e redutivo.
Jung percebe como as crenças de um homem que já chegou aonde deveria chegar, produto de uma série de concepções modernas (inclusive religiosas), gera a frustração de não termos como representar essa necessidade interna de aperfeiçoamento que o inconsciente-mistério exige. Então, ele encontra, na representação alquímica, um conjunto de símbolos muito interessante, que sinaliza ao homem essa perspectiva de aperfeiçoamento, de construção interna. O trabalho alquímico, com suas exóticas técnicas, representa simbolicamente o processo interno de transformação de homens de chumbo em homens de ouro, ou seja, sinaliza uma possibilidade de aperfeiçoamento humano.
Jung argumenta ainda sobre como a negação do feminino decaído, no ocidente moderno (só o feminino puro e iluminado é considerado), faz com que essa parte material obscura do homem, que todos possuímos,não seja vista e aceita, o que acaba gerando sua projeção no outro; daí os grandes conflitos, inclusive da dimensão de guerras de grandes proporções, que não devem cessar enquanto o homem não veja, ilumine e integre seus “demônios” pessoais. Chega a preconizar apocalípticas possibilidades históricas para a humanidade se esses colapsos e conflitos internos não caminharem para serem resolvidos.
Enfim, são 107 minutos de um entretenimento instigante e revelador, que dá novos nomes e lança um novo olhar sobre conceitos filosóficos tão antigos quanto a própria civilização humana…trata-se de um herdeiro de conhecimentos do passado ou um precursor da adaptação desses conceitos ao mundo presente…ou futuro, pois ainda é bastante desconcertante para o homem atual mergulhar no riquíssimo universo de Carl Gustav Jung.
Lúcia Helena Galvão, professora de Nova Acrópole