Esses dias, encontrei, por acaso, o conhecido quadro “Independência ou Morte”, do pintor Pedro Américo, e, com essa mania que os filósofos têm de querer refletir sobre tudo, comecei a pensar sobre a cena. Todos sabem que havia um jogo de interesses por trás, que a cena já havia sido “encomendada” por D. João VI antes de partir, e que aquele príncipe não era lá o que se poderia chamar de um primor de moral. Mas, diante desta bela obra, todas estas coisas se desvalorizam, e nasce o mito: um príncipe, um dia, sacou de sua espada e declarou, em alto e bom tom, que os filhos desta terra (nós!) sejamos amantes da independência, ou seja, da autonomia, da capacidade de nos impormos sobre as circunstâncias adversas, e que só temamos a morte indigna. Se ele não era digno de dizê-lo, problema dele; nós somos dignos de vivê-lo, e o tornamos real, através de nossas lutas diárias, às margens de tantos “ipirangas”, e sua espada corajosa e desafiadora é símbolo de nossa disposição ante as dificuldades… e necessitamos deste símbolo.
Tantas vezes, Platão fala da necessidade do mito; tantos povos o souberam e viveram, mas nós permanecemos indiferentes ante esta realidade, como crianças que se acham muito maduras porque já não creem em Papai Noel. Agora, creem nos shoppings e no dinheiro de seus pais… que tipo de realidade estamos criando? Sim, porque, como sempre, a realidade é criada pela imaginação dos homens, seja ela mítica ou não, e é ela que vai concretizando os fatos.
Quando Jane Austen (já que é momento de confissões, quero deixar registrado que amo Jane Austen!) mostra o seu famoso Sr. Darcy “impactado” por ter tocado a mão de Elizabeth Bennet para ajudá-la a subir na carruagem, sentindo o leve perfume que restou da mão dela em sua mão, sua intenção não era de mostrar um idiota que faz culto a uma jovem nem tão nobre assim, cuja mão, dali a pouco, poderia estar cheirando a cebola. Trata-se do mito da princesa, daquela cuja passagem perfuma o ar pela beleza e nobreza de suas ações e sentimentos. Isso não pode ser real? alguém não pode buscar viver esse mito? Pode… e deve! E como embeleza a vida!
Também nestes dias, eu lia um texto de alguém que dizia que, assim como o corpo físico é parente da terra, a energia de nosso corpo é parente da água, e os sentimentos, da mesma família do ar. Isso significa que, estimulados em sua natureza, os sentimentos tendem a se elevar, a buscar as camadas mais rarefeitas da atmosfera. Não é certo tingi-los de terra; isso os profana e descaracteriza.
O homem é sempre uma mistura “de um e do outro”, como diria Platão; é uma escolha nossa o que vamos, não ignorar, mas, por pudor e amor a nós mesmos e ao outro, ocultar e trabalhar secretamente, e o que vamos expor ( e o que vamos realçar, em nós e no outro) para ajudar a construir o mito, por exemplo, de um relacionamento. Se expusermos que queremos exalar doces perfumes, ou um hálito de dignidade e nobreza, ou um rastro de sobriedade e coerência, seremos príncipes e princesas, porque o sangue que corre em nossas veias será, por definição, azul como o céu dos sentimentos que ele busca. E será… porque o queremos, e nada mais sólido e real do que a vontade humana, capaz de moldar a matéria do mundo na forma que se empenhe em fazer, como tantas vezes nos demonstra a história.
E assim, os cavalheiros (já não mais simples homens!) vencerão a inércia e abrirão caminhos, e sua bravura não será predadora, pois os caminhos que abrirem serão cultivados por suas damas (e não apenas mulheres!) com beleza e com vida. E matarão dragões, sobretudo o dragão do egoísmo, pois o amor de suas damas não lhes permitirá que seu impulso atente contra nada que é nobre e bom. E protegerão suas damas… sobretudo de si próprias, para que sua imensa capacidade de amar não seja toda canalizada para coisas pequenas, limitadas ou até fúteis, “sufocando” aqueles que a cercam de carência e sentimentos de posse e deixando estéreis os caminhos do mundo. Que sociedade construiríamos, assim? Quem não gostaria de viver nela?
Cervantes, no seu Dom Quixote, fala de um homem que acreditava nisso. E, para os que pensavam que seu livro fosse uma simples sátira de costumes, deixa uma simbólica frase, na portada de sua obra: “Após as trevas, espero a luz”. Sempre quis dizer a ele: estamos tentando, querido Cervantes; estamos tentando ser luz, e distribui-la por onde passamos, como quixotes em pleno século XXI.
Amanhece, e saio para o trabalho. Não sou uma simples mulher, nem meu companheiro, um simples homem: somos uma dama e um cavalheiro que saem para sua gesta heroica; à noite, nos reuniremos em torno de nossa pequena “Távola Redonda”, e compartilharemos nossos feitos, e saborearemos, mais que apenas alimentos físicos, a glória, ou essa pequena parte dela a que fizemos jus. E imaginaremos formas de resgatar a grande princesa, a humanidade, da fortaleza obscura onde não se permite sonhar, onde se encontra prisioneira do dragão do materialismo. E assim será… porque o queremos, e nada, nada há mais real, neste mundo, que a imaginação e a vontade humana, ferramentas com que se constroem realidades em todos os planos e em todos os tempos.
Lúcia Helena Galvão, Professora de Nova Acrópole Brasil