Muitos foram os estudiosos da História e os analistas em diversas disciplinas – sem contar os milhares de interessados na questão – que se fizeram esta pergunta. É evidente que não se pode responder de maneira simplista e que optar por um sim ou por um não requer um mínimo de considerações. Justamente as que nos propomos fazer da maneira mais humilde nestas páginas.
Responder, sem mais nem menos, que a história se repete exige provas muito concretas, e nem sempre dispomos delas, ou seja, de que um fato é a repetição de outro. E do ponto de vista filosófico se cria o problema de que quanto mais repetições, menos possibilidades de evoluir.
Que papel exerce o livre arbítrio dos seres humanos se tudo, cedo ou tarde, volta a passar pelos mesmos pontos?
Ir ao outro extremo e afirmar que a história não se repete exige não somente provas de constante originalidade nos fatos, mas falta de visão para não perceber semelhanças altamente significativas. Dizemos semelhanças, não igualdades, pois o exatamente igual é a reprodução a que antes nos referíamos, enquanto que a semelhança permite pequenas variações quanto a matizes, que são as que mais nos interessam.
O mais provável é que a história se repita, dentro de certos limites, retornando à essência dos fatos mais que aos acontecimentos em si mesmos. E a esse retorno devemos somar, embora infelizmente em pequena medida, as experiências acumuladas ao longo do tempo.
Há mais de trinta anos, o Prof. Jorge Angel Livraga, fundador de Nova Acrópole, como Escola de Filosofia na busca da sabedoria, nos assinalava o aparecimento de numerosas características históricas semelhantes às vividas pelo Ocidente na denominada Idade Média, entre os anos 500 e 1500 aproximadamente de nossa era. Nessa época, nos chamava a atenção essa sua ideia que mais parecia uma profecia que outra coisa, mas, à medida que o tempo transcorre, podemos comprovar que a realidade medieval está avançando. Uma nova idade média está se plasmando novamente no Ocidente, em princípio com suas características mais dissolventes e, paulatinamente, com outras consequências favoráveis para a consciência humana.
Quais são essas características perniciosas e dissolventes às quais nos aludimos? São várias, e basta estar a par com o que a imprensa diária nos oferece para detectá-las. Para citar algumas, faremos menção aos violentos separatismos que afetam principalmente a Europa, Ásia e África; as violências raciais de umas etnias contra outras; o desconcerto político e a falta de autênticos líderes que sejam capazes de assumir as rédeas em situações difíceis; as contendas religiosas; os grupos de terroristas que assolam tantos e tantos países; os fanatismos intransigentes; a deterioração da economia mesmo nas maiores potências; a queda das grandes ideologias etc. etc. Cada um desses argumentos mereceria uma análise individual, embora não faltem exemplos dolorosos para apoiá-los. E o conjunto destas situações é muito similar ao outro conjunto de situações vividas no Ocidente quando o Império Romano não pode mais sustentar-se como potência unificadora.
Atualmente falamos da queda do Império Romano; os bárbaros chegaram do norte e do leste, e não houve forças nem coesão para deter essa invasão que, durante séculos, não passou de simples ameaça. Algo aconteceu no interior do Império e algo aconteceu fora; à ruptura interior sobreveio a arremetida exterior que não encontrou obstáculos em seu caminho; e não nos referimos somente aos obstáculos materiais. O Império se esfacelou em múltiplos pedaços, e durante a Idade Média foi muito difícil colocarem-se de acordo os pequenos feudos, os incontáveis reis, chefes militares e nobres, salvo casos esporádicos de alianças momentâneas; as religiões já não puderam conseguir acordos de mútuo respeito; os salteadores tomaram conta das estradas; cada qual teve que aprender a velar por si mesmo até que apareceram novos esquemas de ordem e de poder. Então, como é lógico, acabou a Idade Média e a história tomou outros rumos; hoje chamamos Renascimento a esse momento, embora os homens de então não pudessem denominar tão decididamente a nova etapa que estavam vivendo.
Deixando de lado as denominações que podem resultar mais ou menos pejorativas segundo quem e como as utilize, houve várias idades médias na história, no Ocidente e no Oriente, no norte e no sul, entendendo por idades médias alguns períodos muitos especiais em que todos os esquemas aceitos se rompem e perdem sustentação. Os sistemas falham e todo mundo é consciente das falhas, porque as vive na própria carne. Os governos se tornam impotentes para deter as críticas e as revoltas. Os grandes personagens são grandes hoje, para sofrer amanhã o escárnio do desprestígio sem remédio. As religiões não respondem às necessidades do homem e buscam outras expressões nem sempre religiosas e mais ditadas pela urgência de sobrevivência que por imposição do espírito. A traição é a moeda corrente e se compra e se vende tudo, inclusive e sem rodeios as vidas humanas; os que molestam se matam, e os povos que protestam se aniquilam. Triunfam os bárbaros, os que não pensam, os que têm a crueldade por bandeira e os que sabem mais de pilhagem que das civilizações estabelecidas, os que não acreditam mais que em suas próprias forças e no número de seus seguidores.
Sem intenção de apresentar um panorama deprimente e negativo, algo muito similar está acontecendo agora. E como toda queda, a aceleração é tão grande que a velocidade com que fatos de capital importância vão se sucedendo nem chama a atenção.
Dois séculos atrás, a Revolução Francesa teve que avançar a sangue e fogo para implantar as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade. Dessas ideias hoje ficam as palavras, apenas nomes vazios que, por mais que estejam na moda, não alcançam cobrir a triste verdade da ausência desses valores. Voltamos às utopias de uma igualdade que ninguém aceita de fato, de uma fraternidade que é guerra fratricida e de uma liberdade que existe somente para os que ditam as leis.
Nos dois últimos decênios, nosso século viu precipitarem-se acontecimentos que teriam feito rir a nossos avós; no entanto, a realidade superou a falta de imaginação de nossos avós. Nosso século começou com uma grande revolução; o povo russo foi sua testemunha e seu suporte; nosso século finaliza com outra grande revolução que voltar a assentar-se nos mesmos territórios. Na metade do nosso século, houve outros acontecimentos cruéis: a segunda guerra mundial modificou toda a estrutura da Europa Central, cobrando vidas em troca de novas fronteiras, e no mesmo cenário hoje caem mortos milhares de homens por recuperar fronteiras que pareciam esquecidas.
Ver as coisas como são não significa ser pessimista. E é difícil não ver a idade média que nos invade.
Outra vez estamos em guerra, em guerras, em guerrilhas, em enfrentamentos, em pactos para cessar fogo que não se cumprem, em ódios acumulados, em frações que voltam a se fracionar, em famílias que não se reconhecem entre si e amigos que devem lutar em lados opostos.
Os saqueadores pululam nas estradas e nas cidades, e hoje é mais culpável quem possui um bem do que quem o rouba, porque o primeiro incita ao delito do segundo.
As grandes ideologias políticas que, embora aparentemente opostas, nos mantiveram entretidos durante tantos anos, hoje não são mais ideologias. Fracassaram por uma ou outra razão e seus restos distorcidos não satisfazem a ninguém nem gozam da fé daqueles que dizem sustentá-los. O que há do comunismo? O que há do capitalismo? O comunismo, outrora triunfante, hoje perambula como um réu pelos poucos países que ainda o aceitam. O capitalismo pede permissão para viver sob a forma de burocracias administrativas; o melhor governo é o que mais riquezas tem. O desprestígio corrói por igual as ideias e os homens, e precisamente é o desprestígio humano que se utiliza para derrubar os projetos políticos; hoje tudo são escândalos pessoais, intrigas amorosas, corrupção, suborno, pactos secretos e traições. Como os bárbaros não vão chegar nestas condições? E quem ou com que vão deter os bárbaros?
Com o conceito de bárbaro sucede o mesmo que com o de “idade média”: encerra um significado pejorativo que faz esquecer o verdadeiro sentido da expressão. Para a mentalidade atual, os bárbaros que assolaram o Império Romano foram “os malvados” do filme: mas não eram mais que povos pobres e guerreiros que um bom dia aproveitaram uma brecha evidente para conquistarem terras ricas e promissoras. Claro que não souberam aproveitar essas terras nem puderam manter o florescimento que Roma havia alcançado; mas tinham fome e queriam territórios para sobreviver e expandir em seguida. As novas invasões já começaram e, como sempre, são os povos menos favorecidos que vão avançar sobre os países mais ricos, sobre as cidades com alto nível de vida, sobre os campos férteis. Na Europa, vieram invasões do leste, depois da queda do muro de Berlim e do comunismo soviético; do sul, da empobrecida e exaurida África; e do oeste, onde os países hispano-americanos voltam a vista para o velho continente em busca de meios de vida que já não podem conseguir no novo continente das grandes promessas e dos grandes planos. Por sua vez, a América do Norte vive uma importante recessão econômica; necessita do favor dos industriosos e habilidosos japoneses e não sabe o que fazer com as invasões que aí chegam do sul, seja escapando da miséria ou das guerrilhas e dos tiranos de todas as cores.
A estas alturas é muito difícil manter a aparência de ordem e concerto, por muitas convenções, encontros, deliberações e congressos que se realizem em busca de uma paz que, no fundo, ninguém quer nem está disposto a aceitar. O que todos querem, digam ou não, é sobreviver, e se para isso têm que esmagar os demais, o farão aberta ou às escondidas.
Mas a coisa não termina aí. Destruídos os sistemas políticos com seus esquemas sociais e econômicos, são as religiões que alçam as bandeiras e pretendem conformar novas teocracias, essas teocracias que já se acreditavam enterradas no baú das mais velhas e caducas lembranças. Nem sequer se trata de teocracia ao estilo de um antigo Egito, ou Suméria, ou o Império Inca, ou muitas outras afirmadas em ideias morais e espirituais. Não. São os fanáticos, os intransigentes, os racistas, os fundamentalistas, os que elevam suas vozes e chamam a uma guerra bem fácil de ganhar, pois não há inimigos na frente. Outra vez é o nome de Deus que separa os homens, quando deveria uni-los; outra vez é Deus que recebe infinitos nomes opostos entre si, que veste roupagens diferentes e auxilia seus povos prediletos em detrimento dos outros povos sem Deus.
Mas não há nada novo sob o sol. A história se repete, pois também há séculos foi a religião que manteve a coerência em meio a um mundo instável. É difícil conceber que religiões em pé de guerra possam remediar o avanço destrutivo dessas primeiras etapas da Idade Média. No entanto, entre tanta barbárie, há um vislumbre de luz.
Há mais de mil anos, quando tudo parecia mergulhado na escuridão, o separatismo, a solidão, o feudo e as muralhas de proteção obrigaram os homens a voltar seu olhar sobre si mesmos, não somente para salvaguardar suas vidas físicas, mas para se perguntarem pelo sentido da vida. Pelo sentido da vida, os cristãos foram recuperar o Santo Sepulcro; pelo sentido da vida, velhas religiões americanas deram lugar a outros povos e outras ideias, porque seus livros sagrados já haviam previsto a destruição de suas civilizações; pelo sentido da vida, os muçulmanos recompilaram os ensinamentos dos filósofos gregos e romanos e desenvolveram ciências e artes. Buscando o sentido da vida, o homem voltou a crer em Deus, embora tenha lhe dado distintos nomes e acreditou ser o depositário da única verdade revelada. Buscando o sentido da vida, levantaram-se novos templos, uma vez que foram destruídos todos os que antes existiam, mas foram construídos.
Hoje estamos no olho da tormenta e não podemos ver com claridade; os fatos se sucedem uns aos outros sem nos darmos tempo para refletir nem buscar o sentido da vida. Mas as religiões, com sua loucura e seus fanatismos, enfermas ainda do velho mundo, voltam a fazer ouvir sua voz. É provável que a nova idade média permita ao homem lembrar de suas raízes e o ajude a saltar as barreiras do ódio e a encontrar o caminho que leva ao próprio coração. Encontrando o coração, é fácil encontrar o espírito; e encontrando o espírito, encontra Deus, com ou sem nomes, mas Deus, fim, princípio e meta inteligente de todo este estranho giroscópio no qual estamos vivendo.
A história se repete? Sim, embora não nos demos conta disso; e se nos damos conta, melhor, assim evitaremos dores inúteis e teremos avançado uma volta mais na espiral do Destino sem tanta brutalidade, sem tanta obscuridade, sem tantos sacrifícios estéreis, sem saber quem somos, de onde viemos nem para onde vamos.
Delia Steinberg Guzmán, presidente honorária de Nova Acrópole.