Já ouvi dizer que a imaginação é um poder mágico, e poucas coisas aguçam tanto a minha imaginação quanto os diálogos platônicos. Parece que até os sentidos vão atrás da imaginação para recompor o cenário, recuperando odores e sons, imagens e vozes do passado, sugeridos pelo requinte das entrelinhas do mestre.
Nestes tempos, lendo o Górgias, pequeno dialógo sobre a retórica, senti-me convidada como nunca à presença de Platão e de seu carismático e marcante Sócrates, como se de fato, suma ousadia, tivesse conquistado meu lugar por direito ali, dado o envolvimento vertiginoso com aquela atmosfera, aquele momento, aquele ser humano tão especial.
Num vôo pouco comum, subitamente, me vi atraída a uma localidade distante, algum canto do Pireu, proximidades de Atenas. Uma casa quadrada, ampla, com um pátio ou ágora interna; no androceu, a porta de acesso; baixos relevos pelas paredes; a um canto, jovens escravos servindo bandejas com pães, frutos, jarras de vinho… uma casa de uma pessoa de posses. Ao centro, cadeiras e sofás de reclinar (klines), embora insuficientes para o número de presentes: cerca de 40 pessoas. Os mais jovens se espalhavam pelo chão, ao redor do centro… magnético centro. A um canto, em um kline, o idoso Górgias, atento e reflexivo ao mesmo tempo; ao seu lado, o afoito Pólo, com expressão entre ansiosa e aflita, olhava ora para seu mestre, ao seu lado, ora… para o centro.
Magnetizado por este mesmo “centro”, mas sentado em um tapete ao chão, o mais próximo possível, havia Cálicles, o anfitrião. Um pouco inclinado para frente, talvez por ansiedade, denunciada pela transpiração e agitação do corpo, talvez pelo desejo de beber avidamente cada palavra dita, embora a bebida parecesse, em alguns momentos, bastante amarga. Trazia cabelos revoltos e, no rosto, a expressão da angústia de quem quer saber, mas, ao mesmo tempo, suporta duramente o próprio conhecimento que deseja.
E, finalmente, o centro… levemente recostado de lado no braço da cadeira que ocupava, envolto em uma túnica de tecido rude e um tanto gasto, com as sandálias igualmente gastas e cobertas de pó, descalçadas por algum escravo, com voz pausada e tom doce, mas firme, e um olhar que alternava o foco entre seu interlocutor e um ponto, em algum outro mundo, ponto este que todos se esforçavam por também ver… sim, lá estava Sócrates, como um Sol, dando vida a tudo e a todos que gravitavam à sua volta. De modos e palavras simples, mas dignas e corteses, dialogava consigo mesmo, com sua alma, mas abria espaço, generosamente, para que outros tomassem parte neste peculiar diálogo interno.
Passei os olhos pela sala, buscando identificar mais alguém: estariam ali Glauco, Adimanto, Alcibíades…? não, certamente; a presença destes teria sido motivo de nota e destaque no diálogo, conhecido por mim. Estaria ali…Platão? então, atentei para o fato de que tudo aquilo se passava dentro da imaginação de Platão; o palco daquele encontro era a mente do mestre, e minha imaginação ousava buscar penetrar na dele.
Após o hipnotismo destes primeiros minutos, lembrei-me de mim mesma, e de que eu também compunha este cenário. Como dar veracidade a esta situação, sendo eu uma mulher, em meio ao público exclusivamente masculino de um diálogo socrático? Negar minha identidade feminina é algo difícil mesmo para o prodígio de uma imaginação muito fértil; mas eu havia ido longe demais para retroceder; havia que avançar e colher os resultados do meu esforço.
Passei por um grupo de jovens escravos que se afastaram um pouco à minha passagem, como se nada de excepcional houvesse em minha presença. Apesar disso, ao correr os olhos pelo pátio, confirmei o que eu presumira: nenhuma mulher, além de mim. Fui caminhando com cuidado, contornando participantes do diálogo, bandejas e taças, todos espalhados pelo chão. Ninguém parecia me perceber, por ali; aproveitei a concentração de todos no tema do diálogo e avancei mais um pouco, sentando-me o mais próxima possível do centro, ao chão, um pouco escondida pela cadeira que havia ao meu lado, de um ancião de mãos cruzadas sobre o colo e olhar severo. Estava tão próxima do centro que podia sentir o arfar da respiração de Sócrates, entre cada frase pronunciada.
Naquele momento, Cálicles meneava a cabeça, sem palavras e um tanto aflito, enquanto o mestre prosseguia:
– Tua alegação contra mim, Cálicles, é a de que, levado diante de um tribunal, como vítima de uma injusta acusação, minha falta de habilidade para lidar com estes foros levaria ao meu fracasso e, talvez, à minha morte. Por isso, acusas de inútil à minha filosofia. Contrário a isto, eu te afirmo que disponho da melhor e única eficiente forma de me defender ante aquele Tribunal cuja acusação deve nos preocupar: aquele que julgará nossa alma, despida do corpo, e verá, sem haver como iludi-lo, as feridas e mutilações que os vícios causaram nesta. Posso ter a tranquilidade de que minha conduta e meus princípios, guiados pelo bom conselho da filosofia, mantêm minha alma pura, digna e bem formada. Não há outra defesa eficiente, senão esta, e posso garanti-la para mim; logo, tenho sabido muito bem me defender contra aquilo que é de fato temível: a condenação da alma humana.
Cálicles se angustiava com aquela exposição; por alguma razão, mas por causas bem diferentes, eu também me angustiava. Não era apenas a forma de vida de Sócrates que estava sendo julgada ali; era a forma de vida filosófica, em si. Seria mesmo o mais apropriado ficar indiferente às injustiças do mundo e apenas voltar nossa preocupação à saúde da alma, ainda sob o risco de que nosso corpo fosse destruído? Como fazer algo pelo mundo se deixarmos que os filósofos, os que de fato podem fazê-lo, sejam presas fáceis em mãos de tiranos?
Sócrates retoma a palavra:
O mais feliz dos homens é aquele que não maculou sua alma com vícios, assim como o mais feliz dos corpos é o que não adoeceu; mas se as almas ou os corpos adoecem, o melhor é aquele que busca a medicina ou a justiça, através da correta punição, que possa curá-los. O pior e mais infeliz, sem dúvidas, é aquele que, doente de corpo, nega o remédio; doente de alma, nega a correção. Por isso, Cálicles, se o tirano comete injustiça contra o justo, tirando-lhe a vida e ficando impune, não é este último, o justo, a maior vítima, nem o mais digno de compaixão, pois é sempre muito melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la.
A angústia, minha e de Cálicles, só aumentara, mas, enquanto que, para ele, pareciam faltar as palavras, as minhas fugiram ao meu controle e explodiram, de repente:
– Mas Sócrates, não te parece que há algo pior para o injusto do que a doença em sua alma, sem querer se curar? Não seria ainda pior, depois de muito sofrimento, por fim, querer a cura, mas faltarem os médicos, pois ele vitimou a todos com sua injustiça? Não seria por compaixão que o médico da alma, que é o justo, deveria procurar preservar-se de sofrer injustiças, pois sua vida é a esperança de redenção para estas almas mutiladas pelo vício? Não deveria o justo manter-se vivo por compaixão para com o injusto? Não seria egoísmo marchar tranquilo para o Tribunal celeste, de Minos, deixando para trás um mundo em chagas, sem esperança de redenção?
Minha voz parece que soou cortante e metálica, despertando a todos para a minha presença, estranha presença, naquele ambiente. Como que subitamente despertos, todos me olharam e se entreolharam, num misto de surpresa e indignação. Isso pouco me importava: não viajara mais de dois mil anos para me preocupar com preconceitos, antigos ou atuais, de mortos ou de vivos, que são todos muito parecidos, neste particular aspecto. Só via Sócrates diante de mim, só ele existia.
Precisava levar para casa aquela resposta; tratava-se de como viver, de como responder à mais ingrata circunstância que ronda todos os que despertam para a filosofia, ao longo da história: a incompreensão e a injustiça. Em minha modesta condição de aprendiz de filósofa, já experimentara o gosto de ambas, e agora, duvidava que minha reação tivesse sido a mais adequada.
Dei-me conta do olhar de Sócrates em minha direção: fixo, atento e, fato curioso, levemente sorridente, expressão que não esboçara até aquele momento. De repente, as palavras surgiram, pausadas e seguras, como sempre:
– Digamos, minha inesperada visitante estrangeira, que este nosso “imaginário” tribunal de injustos tivesse me acusado e levado à morte, e eu a aceitasse com serenidade. O que mais te serviria como ensinamento: minha forma de viver, minha forma de morrer, ou ambos?
A pergunta me causou um impacto: é claro que amava cada palavra de Sócrates, em vida; mas sua morte, e a forma como encarou sua morte, foram simplesmente imprescindíveis. Sua dignidade, coerência e coragem, raras, sobretudo ante uma experiência tão difícil, tornaram-se um patrimônio para todo homem que volta seus olhos e sua vida para a busca da sabedoria; sua morte foi um “fecho de ouro” para sua vida, digna desta…
Sem me dar conta, balbuciei uma resposta:
– Penso que ambos, Sócrates…
O mestre, levemente reclinado para a frente, com uma voz talvez um pouco mais baixa, ponderou:
E não pensas, então, que o justo educa ao viver e ao morrer? ao ser aceito ou ao ser rechaçado? quando o consideram ou quando o desprezam? toda a vida do justo é medicina para a alma daquele que deseja curar-se…ou talvez o seja mais ainda a resposta aos momentos amargos, por sua maior dificuldade… não concordas com isso?
– Sim, concordo…Sócrates…
A palavra “mestre” veio aos meus lábios…como ele a merecia! Mas talvez sua pronúncia, naquele momento, aumentasse o desconforto dos presentes. Ela não fora pronunciada…mas senti que ele a recebera.
– Então, concordas que o justo deve viver quando é justo viver; morrer, quando é justo morrer, e deixar aos deuses a decisão de quando um ou outro é mais oportuno e útil para todos?
– Certamente, mestre…
Pronto: a palavra proibida escapara; a aspereza dos olhares transbordou em expressões entrecortadas e cada vez mais ruidosas de desconfiança e desconforto.
No meio do ruído, identifiquei a resposta do mestre a alguma indagação ou protesto de Cálicles:
– Agora é momento, meu bom Cálicles, de nos despedirmos, com tua admirável e já costumeira hospitalidade, da visitante estrangeira, que tem longo caminho pela frente até alcançar sua casa.
E, voltando-se para mim:
– É melhor partires agora, amiga; e leva meus bons votos ao teu povo, especialmente àqueles que, dentre eles, se dedicam à filosofia, e a cultivar, como consequência desta, a justiça e o bem.
Agradeci, levantei-me e saí, deixando, ainda nítidas, atrás de mim, algumas vozes confusas de protesto.
Passando pela porta principal, caminhei reto, passando por ruas estreitas e empoeiradas, de volta ao meu tempo e ao meu mundo, agora, bem mais certa de que este não é exatamente o meu tempo e o meu mundo… ainda há muito a caminhar. Mas sei que há que caminhar sempre assim, reto, sem atentar às vozes confusas que nos cercam, buscando nosso mundo, trazendo dentro de nós a voz do mestre que, desde o centro, de um centro sem tempo, orienta, ilumina e aponta o caminho.