Em uma época em que o tema “inteligência artificial” está tão em moda a ponto de já existir, por parte dos mais imaginativos, uma espécie de contagem regressiva para a chamada “singularidade”, momento em que a inteligência de uma máquina superará a de um ser humano, gostaria de fazer uma pequena contribuição, uma gota de reflexão para ajudar a ver com mais detalhes aquilo que se pretende copiar: a inteligência natural.
Tenho falado bastante, em minhas conferências (existe uma especificamente sobre Consciência Humana e Inteligência Artificial, inclusive, disponível no Canal da Nova Acrópole no YouTube), sobre a etimologia da palavra inteligência, que a relaciona com “escolher dentre”, ou seja, com discernimento e identidade, que nada mais são do que o encontro de si mesmo, apesar da poderosa persuasão do meio querendo “escolher” por nós. Já tratei bastante, também, acerca de uma série de vias de conhecimento bem peculiares à inteligência humana que não compreendemos; inclusive, em muitos casos, sequer sabemos de sua existência.
Mas o que sugiro, neste pequeno artigo, é dar destaque a um outro detalhe do assunto, além dos já citados, sugerido por alguns autores clássicos, mas também acrescido de algumas vivências de minha parte. Pois bem, percebo a inteligência não como algo a que se deve chegar, mas algo do qual se parte. Sim, ela seria um ponto de partida, como um sistema que, uma vez ativado, disponibiliza para nós uma série muito numerosa de aplicativos engenhosos para recolher conhecimentos das mais diversas e peculiares formas. Mas como ativar este sistema?
O grande filósofo Platão, a partir de sua célebre “Teoria das Ideias”, repete, em algumas ocasiões de sua obra, que a maior de todas as ideias seria a ideia do Bem, sendo todas as demais subordinadas a ela; no muito conhecido “Mito da Caverna”, esta ideia fundamental é, inclusive, comparada à luz do sol. Também o filósofo Immanuel Kant considera que todas as virtudes não são mais que meios e, como tais, podem ser usadas para o bem ou para o mal, com a única exceção da boa vontade, ou seja, uma vontade profunda de chegar ao Bem, que é sempre e incondicionalmente boa. Senão, percebam como virtudes tais como organização, fidelidade, iniciativa, coragem e criatividade, além de outras, têm sido fortemente usadas a favor do chamado “crime organizado”, por exemplo, potencializando-o cada dia mais.
Ocorre algo interessante com o nosso “Conceito do Bem”, tantas vezes relacionado ao Todo e a Deus; sem qualquer intenção de especulações de cunho teológico, com certeza, esta poderosa Ideia é como se fosse mesmo uma espécie de Sol, uma fonte gigantesca de energia. Como experiência para comprovar a teoria, experimente dedicar um dia inteiro a pensar e agir inspirado apenas por formas mentais elevadas e generosas, por atos puros e benfeitores, sem deixar que nada contrário a isso penetre em sua mente. Ao final do dia, o nível de energia que canalizamos é impressionante. Tenho a impressão de que, após um dia como estes, seria capaz de enfrentar grandes obstáculos (que, em outras ocasiões me intimidariam), com sucesso. Nosso pensamento fica concentrado e eficaz, nossa capacidade de compreensão racional e simbólica fica muito mais aguçada e precisa. Sempre me pergunto acerca de que tipo de ser humano nos tornaríamos se conseguíssemos manter este estado por um prazo maior.
Esta Ideia-sol, essa grande bateria cósmica, que é o Bem, quando conectada à nossa inteligência, gera um fluxo de criatividade, de capacidade de geração e renovação que é mesmo impressionante, e vai despertando “aplicativos” impensáveis, que saem gerando “links” para níveis de percepção e coleta de conhecimento absolutamente inusitados. Por exemplo, há o link para a “inteligência empática”, que nos faz perceber o momento emocional do outro e o quanto pode estar necessitando de ajuda; há o link “simbólico”, que sai retirando ensinamentos válidos até de uma pedra, que encontramos em nosso jardim, além de nos franquear acesso à compreensão de grandes mitos do passado; há o link “sistêmico”, que nos faz sentir a humanidade como nossa família, e desperta um senso de compromisso e responsabilidade excepcional, além de muitos outros.
E , além disso tudo, ainda há o chamado “processo de fluxo”, que ocorre quando somos despertos pela ideia o Bem, atuamos, geramos frutos e os devolvemos a esta mesma Ideia geradora que os concebeu e inseminou em nós. Somos como a terra, que não espera que seus frutos sejam dela, mas apenas que lhe deem novas sementes para continuar seu processo de transformação e geração de vida e alimento. Com este fluxo, a energia circula e volta até nós, sempre e cada vez mais potente. Livres de apegos e a serviço do Bem, somos como aquele Ulisses, em sua Odisseia, que só após perder navios, homens, sua jangada, suas roupas, tudo, enfim, e mergulhar despido no mar, emerge puro e consegue prosseguir seu caminho rumo à sua amada Ítaca, a “brilhante”. Ou melhor, não despido de todo, mas com seu peito protegido pelo veu da Deusa Ino:
Sê cordato,/As vestes e o madeiro, entrega-os às vagas;/Lança-te a nado à ilha, onde um refúgio/é destinado a ti; toma, e, aos peitos, esta/cinge, para salvar-te, imortal cobertura./Ao negro ponto, às praias, mal as atinjas,/virando as costas, para trás a arrojes”´´.
— Homero. Odisseia, livro V, 245
Ou seja, seu coração/centro de identidade é protegido por uma ideia divina, que não o deixa perdido, ao sabor das marés e de seus perigos. Quem sabe a Ideia do Bem?
Orientar a inteligência pela ideia o Bem significa, na prática, por exemplo, ser fiel ao objetivo de conduzir todos aqueles com quem contracenamos, em nossa vida, em direção ao ideal para o qual a natureza os criou e rumo ao qual ela os destina, sem querer para nós nada além de servi-lo. No mito da caverna, o homem só saiu das trevas ao aprender a olhar para as coisas iluminadas pela luz do sol, ou seja, pela Ideia do Bem, e não pela luz limitada de seus interesses pessoais. A máxima dos cavaleiros templários já dizia:
“- Nada para nós, Senhor, nada para nós, mas tudo pela Glória do Teu Nome.”
Uma pequena porção dessa conexão inteligência/Bem me permite, por exemplo, possuir a coragem necessária para me lançar ao estudo de livros tidos como impenetráveis, não com a pretensão louca de esgotá-los, mas confiante de que não sairei deles com as mãos inteiramente vazias, e sim com uma porção, que pequena, de ideias e conhecimentos passíveis de serem vividos e compartilhados. Assim, também podemos nos lançar à vida mais perceptivos, criativos e seguros, pois percebemos suas leis e confiamos nelas, abolindo a energia gasta com confrontos e conflitos inúteis e banais..
Enfim, é inumerável a quantidade de possibilidades e de “interfaces” internas e externas que a inteligência impulsionada pela ideia do Bem pode desenvolver e desenvolve, de fato. O potencial humano flui e aponta para inúmeras outras novas possibilidades, todas transformadoras, contanto que sempre assumidas com responsabilidade, compromisso e busca de harmonia.
E não se trata apenas de ideias copiadas de alguém, mas de uma experiência própria de vida, sujeita a ser demonstrada e oferecida aos demais. Definitivamente, há que partir agora para o conhecimento da inteligência natural, com todas as suas múltiplas possibilidades e prodígios, caso se queira de fato replicá-la… Resta saber se, depois de desvendarmos o mistério e a maravilha própria da inteligência natural, a sua réplica ainda parecerá necessária ou será de fato desejada!
Prof. Lúcia Helena Galvão