Mais uma manhã, tarde e noite, indo e voltando, com carros que passam voando por mim. Um dia, minha filha me falou que as pessoas deveriam colocar o número do seu celular no vidro… “- Para quê, minha filha?”, perguntei, sem captar o tom levemente irônico na voz: “- Para ligarmos e sabermos se deu tempo, mãe! Deve ser muito urgente o que ele vai fazer!”
É verdade; deve ser mais do que urgente: deve ser desesperador. Sem bairrismos, Brasília deve ter alguns dos mais belos amanheceres e crepúsculos do mundo; sempre se pode ouvir algum sabiá dobrando o trinado, pelo caminho; sempre se vê algum cãozinho desocupado rebolando de barriga para cima na grama úmida (deve ser muito bom, isso!). Mas nós….temos pressa.
Não vou aqui delinear o óbvio, que todos já preveem: a maioria absoluta não tem pressa nenhuma. Correm para a televisão, para a mecanicidade, para o sono, para a solidão. Não há alvo a alcançar com essa correria; em geral, nada que seja urgente ou que tenhamos sabido tornar importante.
Depois de anos sem entender e nem mesmo me perguntar pelas razões disso, acabei convidada, pelas circunstâncias, a uma resposta. Numa estrada vazia, um caminhão seguia a uns 40 ou 50 km; coloquei minha seta e o ultrapassei, como de praxe. Porém, ao passar ao seu lado, seu olhar me chamou a atenção: era raiva incontida que havia ali, era frustração, como se eu o humilhasse ao ultrapassá-lo. Numa descida, ele embalou seu caminhão e me passou a mais de 120 km, num lance que, mais que excesso de velocidade, demonstrava triunfo e vingança.
Esse motorista me fez prestar atenção a este fato tão simples e cotidiano: ultrapassagens. Percebi que não se trata de pressa propriamente dita, mas de afirmação pessoal. Todo ser humano necessita de seu “minuto de glória”, de vitória, de superação de algo; no vazio de uma vida banal e sem objetivos, eu me afirmo superando o carro à minha frente; provo a ele, por um minuto, que sou melhor motorista, que tenho melhor carro, que sou especial. “- Passar na minha frente? Que desaforo! Está pensando o quê?”
É claro que esta competitividade selvagem que tanto nos escraviza não deve se mostrar apenas aí; este é apenas o seu momento de exibição mais ridícula (ou não?). Sem fôlego ou musculatura moral para superar a nós mesmos, sem vida interior para nos alimentarmos de alvoradas ou de crepúsculos, sem sonhos nem objetivos maiores, vivemos numa marcação palmo a palmo contra aqueles que passam por nós. Sempre “contra”, e não “com”. Sempre sozinhos… e correndo para o nada. Não importa o destino, mas chegar primeiro; e se o destino for um abismo?
Que insólito… os corredores compulsivos são, na verdade, sedentos compulsivos, querendo, inconscientemente, chegar a um lugar ao qual não se vai de carro: ao fundo de si mesmos, para encontrar seus sonhos, para alcançar um sentido maior e real para suas vidas. Concordo: isso é urgente, mesmo. Por isso e por tantas outras coisas, eu, agora, passando por um horizonte cravado de raios vermelhos, como uma despedida tardia da luz que já se foi, levando mais um dia que nunca se repetirá, reflito comigo mesma : que bom motivo este para realizar o meu melhor, para rastrear e encontrar este caminho e, depois de tudo, empenhar o meu melhor esforço… para construir um mapa. Isso é o ofício e o sonho dos aprendizes de filósofos, amantes de sabiás, de auroras e de vidas vividas sem pressa e sem pausa.
Lúcia Helena Galvão, professora de Nova Acrópole